Era madrugada de 2 de abril de 1964 quando o Congresso Nacional foi convocado para reunião conjunta entre as duas Casas, Câmara e Senado. Auro de Moura Andrade, do Partido Social Democrático (que disso só tinha o nome) presidia o Senado Federal desde agosto de 1961, quando João Belchior Marques Goulart tomou posse como presidente da República.
O objetivo central da convocação, como bem lembrou o deputado Ranieri Mazilli, presidente da Câmara dos Deputados e correligionário de Moura Andrade, era uma mera formalidade de leitura de uma carta. Da lavra de Darci Ribeiro, então Chefe da Casa Civil do governo Jango, a carta informava ao Congresso Nacional que o presidente da República estava em território nacional, no Rio Grande do Sul, e de lá seguia comandando o seu ministério.
Prelúdio do Golpe: a cúpula militar
Horas antes, ainda em 1° de abril (ah, o dia da mentira…), golpistas haviam aglutinado forças militares na região do Vale do Paraíba. Emílio Garrastazu Médici, Amaury Kruel, Armando de Moraes Âncora reúnem-se e, sob o pretexto de proteger o Brasil, rasgam a Constituição e decidem pela deposição do presidente eleito democraticamente. Sobre as eleições em particular, é interessante destacar que João Goulart sequer compunha a nominata de Jânio Quadros, que era da UDN: Jango foi eleito porque na época, os vices-presidentes eram votados em separado, e o gaúcho obteve mais votos que o candidato a presidente eleito. Passou ainda por um segundo escrutínio, em 1963, que escolheu o presidencialismo e devolveu a Jango as prerrogativas de Chefe de Estado.
Para proteger a si e ao seu mandato, João Goulart decide, na noite de 1° de abril, voar para Porto Alegre, onde arregimentou tropas leais e ordenou ao general Kruel a prisão do general Castelo Branco. A ordem não foi cumprida: a Academia Militar de Agulhas Negras havia unido-se aos golpistas, e o general – assim como Jango – se negava a abrir fogo contra os futuros oficiais brasileiros. O golpismo havia tomado a maior parte das Forças Armadas, e resistir significaria o início de uma guerra civil.
Jango ordena então que o Congresso fosse informado que ele continuava em território nacional, acompanhado de seu Chefe da Casa Militar, o grande General (este sim, com letra maiúscula) Argemiro de Assis Brasil. Darci Ribeiro redige a carta, que é lida em um Congresso Nacional que não entendia bem porque havia se reunido.
O golpismo desavergonhado
A expectativa dura pouco: após a leitura da carta, Auro de Moura Andrade, latifundiário inconformado com os projetos de reforma agrária do governo Jango, ignora o seu conteúdo. Já passava da meia-noite, mas as suas mentiras ficariam registradas para sempre: “declaro vago o cargo de presidente da República”.
Sob protestos do plenário e gritos de “golpista”, Moura Andrade ordena que as luzes fossem apagadas, e os microfones desligados. Um protesto solitário ainda ecoava no Plenário: era Tancredo Neves, deputado federal e líder do governo. “Canalha! Canalha! Canalha! Mil vezes canalha!”, gritava Tancredo, dando ao presidente do Senado o nome que ele merecia.
Com isso, assumiu a presidência o deputado Ranieri Mazilli, presidente da Câmara, para governar por treze dias. Em seguida, o governo seria conduzido pelo Comando Supremo do Golpe, composto por Artur da Costa e Silva, Augusto Grünewald e Francisco de Assis Correia de Melo. Em 14 de abril de 1964, toma posse o primeiro ditador do Golpe, o general Castelo Branco, que havia recebido a ordem de prisão não cumprida e há tempos tramava derrubar o presidente.
Reparação histórica: a devolução do mandato de Jango
Foi apenas em 2013 que o Congresso Nacional reconheceu seu erro. Por ato do Senador Renan Calheiros, presidente do Senado Federal, votou-se a anulação da decisão da madrugada de 2 de abril de 1964. Auro de Moura Andrade seria, com este ato, colocado de vez na lata de lixo da História, sob o epitáfio cunhado por Tancredo Neves e que deve emoldurar a foto de todo aquele que ainda defende os ocorridos no dia da mentira: canalha! canalha! canalha!
João Goulart teve, finalmente, o sepultamento digno de um Chefe de Estado. Em 18 de dezembro de 2013, seus restos mortais foram recebidos em Brasília pela Presidenta Dilma Rousseff, a quem o Congresso golpearia dois anos depois, também em procedimento sem qualquer base constitucional.
Renan Calheiros assim resumiu a devolução do mandato de João Goulart:
Como Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, em nome da instituição, peço desculpas pela inverdade patrocinada pelo estado contra um ilustre brasileiro, um nacionalista, patriota, reformista e que, talvez, tenha conseguido reunir uma das melhores equipes de governo na história do Brasil.
Disponível na íntegra na página do Senado Federal
É triste escrever sobre isso, já com o necessário distanciamento para compreensão dos fatos, e ainda ver que nossa democracia é frágil. Perceber que ainda há, no seio da democracia, aqueles que defendam as atitudes golpistas de 1964 é desalentador. Porém, mesmo neste cenário nefasto, precisamos continuar a esclarecer e resgatar nossa história. Até que o último golpista tenha seu nome sempre acompanhado do epitáfio adequado: canalha! canalha! canalha!